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Arte e Cultura


MESTRE DIDI

por Thais Darzé

Para alcançar o trabalho do Mestre Didi, cuja obra transita entre as artes visuais e o culto dos ancestrais da África negra, é necessário mergulhar nas raízes da cultura brasileira, baiana, em suas relações passadas e no tempo contínuo. Suas esculturas, que mesmo contemporâneas no sentido das tradições da arte ocidental, são detentoras de amálgamas que se ligam ao trânsito entre a África e o Brasil. Assim, pensar a obra do Mestre apenas enquanto objetos de arte seria um reducionismo equivocado.

Nas culturas em geral e em seus diversos tempos não é possível pensar em uma cultura absolutamente pura, tampouco elucubrar que um povo possa ser detentor de alguma legitimidade sobre outros. Mestre Didi e sua produção de objetos sacros/esculturas nos trazem justamente essa mescla antropofágica tão defendida na cultura brasileira: diria que o trabalho do Mestre é um dos mais autênticos resultados desse tipo de processo no Brasil. Didi alimenta a alma e busca fontes intrínsecas de seu universo Nagô, que revelam as forças da natureza na relação direta do candomblé e seus orixás com os povos nas duas margens do Atlântico.


É preciso, antes de qualquer coisa, descontruir alguns conceitos sedimentados pelo senso comum. O ponto de partida é se desvencilhar da ideia deturpada de uma África como um continente de uma só identidade, independentemente da região, tribos, etnias ou povos. Precisamos compreender a África em sua pluralidade e diversidade: um continente formado por diversas culturas, milhares de tribos, dialetos e hábitos diversos. Mas não é só; é preciso lembrar que essas unidades, juntas ou isoladamente consideradas, são potências culturais que continuam a moldar o modo de ver, sentir e de expressar dos mais variados povos da cultura ocidental, desde os tempos mais remotos. Outro ponto intransponível é a impossibilidade de compreender a arte africana com referenciais estéticos e conceituais que não lhe sejam próprios, por uma perspectiva e visões de mundo pautadas em padrões europeus. Paradoxalmente, é a cultura europeia que é substrato histórico das várias culturas do mundo, inclusive a africana.


Deoscoredes Maximiliano dos Santos – Mestre Didi – nasceu em Salvador em 1917, filho biológico de Mãe Senhora, a terceira ialorixá do Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá. Membro integrante desse terreiro até uma viagem à África Ocidental para visitar o reino de Ketú, que se espalha por Nigéria, Benin e Togo. Após essa viagem, surge o Ilê Asipá, terreiro fundado por ele, em 2 de dezembro de 1980, quando recebeu e confirmou o título de Alapini, sacerdote supremo do culto aos Egungun. A maior parte dos terreiros de candomblé tem como razão de existência o culto aos orixás: o Ilê Asipá é de culto aos eguns, ou seja, de adoração principalmente aos ancestrais e à cultura afrodescendente. Nessa mesma viagem, Didi confirma sua descendência da tradicional família Asipá, uma das sete principais famílias que fundaram o reino de Ketú.


O maior contingente de Africanos que chegou à Bahia, foi da região do Benin, e sua religião se impôs mesmo com as proibições e perseguições. Expressões culturais de origem africana se consolidaram, principalmente em Salvador, através de séculos de estratégias de sobrevivência, tornando-se presente no cotidiano por meio da religião, da culinária, da música etc. A escravidão desterrou o negro da África, mas não conseguiu apagar seus valores e visões de mundo que sobreviveram no cativeiro, se transformando em legado, identidade cultural e motivação para produção artística.


Exemplo desse fenômeno raro de continuidade da cultura negra, levando em conta o contexto em que se realiza, temos na cidade de Salvador manifestações rituais e simbólicas, como os afoxés, a capoeira, rodas de samba etc. Nesse conjunto de manifestações, o Candomblé merece atenção especial como manifestação religiosa, prática sociocultural de rituais cotidianos: as segundas feiras de Omolu, as terças de Ogum, os Carurus de São Cosme e Damião, as festas de Yemanjá, o culto a Oxalá, os padês para Exu, os presentes de Oxum. Estes e outros rituais compõem um ciclo de cerimônias de vida social de louvor e agradecimento aos ancestrais.


É importante lembrar que o Candomblé é uma criação brasileira e que apesar da influência da cultura africana, o culto aos orixás nesse formato só acontece no Brasil. Os Terreiros são uma recriação simbólica de toda uma nação africana, são sociedades complexas com códigos de conduta, hierarquias e políticas próprias. Na África cada região cultua apenas um orixá enquanto que no Brasil cada casa cultua vários orixás ao mesmo tempo.


É nesse cenário de ebulição da cultura negra, nessa cidade que é berço do Candomblé e das tradições africanas, nesse contexto religioso ímpar, que surge o Metre Didi com sua cosmovisão, que vai nas origens para dialogar com a atualidade. É nas entranhas do tempo que cresce e se forma este artista visual de afirmações e valores afro-brasileiros e educador preocupado com a permanência da cultura Yorùbá.


Nas palavras de Jaime Sodré no seu livro A Influência da Religião Afro-Brasileira na Obra Escultórica de Mestre Didi, “O Candomblé é, então, o veículo possível de sobrevivência, referência e resistência de uma cultura étnica produzida pela presença escrava no Brasil e é, também, a possibilidade de manutenção de uma identidade e solidariedade que o violento processo escravocrata não conseguiu extinguir. É, portanto, o repertório mitológico de codificações simbólicas dos Òrìsá, inspiradores, em diversos níveis, do fazer artístico de muitos, porém em gradação de conhecimentos básicos fundamentais, que vão da profundidade e domínio completo desse universo, como é o caso do Mestre Didi, aos que se limitam às informações corriqueiras, às vezes infundadas.”


Assim como na obra de Mario Cravo Jr, Mario Cravo Neto, Rubem Valentim ou Tarsila do Amaral, na obra do Mestre Didi não é diferente: também não romantiza, apenas deglute a cultura brasileira, nas suas matrizes, e as apresenta enquanto realidade transfigurada dos objetos ritualísticos de seu culto para uma linguagem contemporânea e universal. Sem esquecer a dura poesia do povo negro na Bahia, seu ponto de partida são os quatro Orixás do Panteão da Terra que compõem um grupo de orixás que estão relacionados com o elemento terra e, portanto, intimamente ligados com a ancestralidade e com o Culto aos Eguns.
Esses orixás são: Obaluaiê, que representa o princípio masculino do Panteão da Terra, filho abandonado por Nanã e adotado por Yemanjá, deus da varíola, das doenças contagiosas e da cura. Por isso, esconde o segredo da vida e da morte; Nanã Buruku, que é o princípio feminino, divindade muito antiga das chuvas, dos mangues, do pântano, da lama, senhora da morte, e responsável pelos portais de entrada (reencarnação) e saída (desencarnação); Oxumaré, que é a serpente-arco-íris, é movimento, mobilidade e atividade, seu trabalho consiste em recolher toda a água caída das chuvas, e levá-la de volta às nuvens. Representa o completo ciclo da existência; e Ossain, orixá patrono da vegetação, o grande sacerdote íntegro das folhas, a sua importância é fundamental, pois nenhuma cerimônia pode ser feita sem sua presença, sendo ele detentor do axé, imprescindível até mesmo aos próprios deuses.


Para Didi, assim como para os demais escultores africanos, as obras são realidade mítica, representam um lugar de elevação e ligação com o sagrado. A importância da verticalidade e da simetria traduzem valores de natureza estética, formas totêmicas em direção ao infinito, numa busca constante de conexão com sagrado, com o mundo espiritual, o que, confirma a impossibilidade de separar o artista do sacerdote e de sua religião. Essa conectividade faz parte da visão de mundo dos africanos, portanto, de seus ancestrais. Para seu povo tudo está conectado; homem, vida, morte, forças da natureza. Tudo está relacionado ao funcionamento do cosmo e um não age sem o outro.


O artista usa como referência emblemas tradicionais do universo nagô, transmite os costumes, hierarquias, línguas, concepções estéticas, dramatizações, literatura e mitologia dos povos africanos, sobretudo a sua religião, e utiliza de profundo conhecimento simbólico para a escolha dos materiais de suas esculturas. Materiais retirados da natureza, como palhas e nervuras de palmeiras, couro, contas e búzios, e nas cores utilizadas que remetem a princípios sagrados, tendo por base o arco-íris.


Como em todo processo criativo, o imaginário pessoal do artista recria formas e novas possibilidades para suas esculturas. Didi ao mesmo tempo em que se inspira e transfigura os emblemas e símbolos de suas tradições, também é livre ao multiplicar cores e materiais que não têm propósito religioso, apenas evidenciam uma visão cultural particular. As obras surgem a partir da própria maneira do artista de ver, vivenciar e associar, para assim criar seu vocabulário escultórico contemporâneo particular.


A importância e originalidade da obra de Mestre Didi é deflagrada através da antropofagia da cultura africana para criar uma obra única brasileira. Assim como Tarsila do Amaral o fez em relação a cultura indígena, Didi posteriormente veio para nos lembrar a pluralidade brasileira e as diversas possibilidades de matrizes inspiradoras para a criação e recriação de algo autêntico, único e original lastreado em uma das culturas que deram origem ao Brasil. Oswald de Andrade afirma no seu manifesto, "só a antropofagia nos une".



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